terça-feira, 11 de dezembro de 2007

UM CONTO DE NATAL

Celeste Correia foi professora na nossa escola até há bem pouco tempo e, como felizmente os seus caminhos ainda se cruzam com os nossos, disponibilizou-se para colaborar com o nosso blog, enviando-nos, entre outras coisas, este invulgar conto de Natal, dedicado aos alunos que a ensinaram a trilhar os mais belos caminhos da vida e aos que lhe transmitiram nobreza de valores que foi assimilando:

Um pesadelo? Um gemido? Um ser humano? Tinha a alma vestida de amargura, o coração cercado de angústia e o desamparo a varrer-lhe corpo e alma! …Quem quer que pudesse parar para o acolher e dar-lhe um pouco de alento era repelido pelo cheiro nauseabundo daquele acanhado espaço tão sombrio como imundo. Trapos velhos, seringas e um sem número de objectos já sem forma, enchiam aquele canto cujo abrigo eram uns muros em ruínas e um tecto, aqui e além descoberto, por onde alguma estrela mais teimosa, ousava espreitar, nas longas noites de Inverno.
Era no centro de uma grande cidade, dessas obras-primas do século XXI onde moram, paredes meias com o Progresso, arranha-céus e miséria. Como pode neste século “Iluminado” conviver a maior riqueza com a mais extrema miséria?... Dão-se bem?!
Era um pobre … (alguém diria: “pobre diabo…”) já sem veias, já quase sem suporte físico, já quase sem alma, já quase sem existência… Um sopro, um vento, uma aragem poderiam, a qualquer instante, apagar aquela vida que ainda ousava gritar no silêncio amargo do abandono: Porque tardas em vir, ó morte, porque tardas em vir, se tens de chegar?! Não sabes, ó morte, que a vida é mesmo assim… mar de ilusões, mar de vaidades, mar de hipocrisia que naufraga dia a dia? Quem aguenta a dor que joga ao desafio entre o limite do sofrer e do viver?
E tudo começou quando aquele, ainda belo menino de treze anos, se lembrou de jogar à cabra cega.
Era já tarde; recordou nos minutos que fechavam aquela noite de vinte e quatro de Dezembro. Tudo o que era sublime então, se transformou em amálgama de miséria. Houve um tempo em que a amizade, a alegria, a felicidade e o amor foram crescendo com ele à medida que o tempo decorria, rápido demais. Neste jogo de liberdade e cabra cega consigo próprio, se foi perdendo e confundindo. Sua Mãe morreria dali a quatro anos. Houve um tempo, recordou no ecrã da sua memória, despedindo-se: convivi, diariamente, enquanto ia decorrendo a história da minha vida, com uma sucessão intensa de acontecimentos, com opiniões fortes, com indignação, com solidariedade e compromisso, construindo ideais embalados em sonhos, aprendendo na alegria a felicidade e o amor que transpirava das coisas pequenas… jogos de bola, de escaladas de montanha, de sorrisos da madrugada, dos barcos à vela, do brilho das estrelas, das noites sem luar e da linguagem do Pôr do Sol. Agora, farrapo de gente, mal distinguia o rosto dos amigos que cresceram com ele e queria agradecer-lhes… despedir-se... convidá-los a ser livres. Agora vence a cabra cega. Confundido não sabendo se já para além da vida… Também se morre no Natal? Tem o direito de renunciar à vida?
Um manto invade o sub-mundo que o rodeia. Um vulto o envolve. Sua Mãe virá aconchegá-lo? Aquela Mãe que foi morrendo nesse jogo de cabra cega…cuja vida o desalento foi ceifando debatida pela angústia que destrói o direito de morrer descansada e que ele não soube escutar.
Eram já decorridos alguns anos e o seu pequeno Ernesto pedia-lhe, agora com dezanove anos, com a energia a escoar-se-lhe que, neste Natal, junto de Jesus Menino, lhe colocasse, de novo, no sapatinho de quando ainda era menino, de presente, um milagre. Nesta agonia só sua Mãe lhe poderia valer. Implorou a sua protecção, lá do alto, com toda a sua fé de menino, pedia-lhe conforto para o seu último Natal.
Subitamente, aquele espaço transformou-se.
Eis se não quando, do sapatinho de menino, ali colocado, irrompe um brilhante clarão! Era meia-noite! Tinha chegado o Natal!... Ernesto abre os olhos e bebe uma poção mágica ali colocada. Seria o Milagre pedido?!.
Não se sabe se houve milagre. Sabe-se sim que houve transformação, confirmam os seus escritos, recolhidos por alguém que, mais tarde, acredita tê-lo encontrado.
Abandonou o “cabra cega” passando ao jogo com a “liberdade”, tudo fazendo por ajudar outros meninos que ali vinham refugiar-se e pensava, repetidas vezes: Quando será que o sofrimento se compadece daquele irmão? Porque está ele ali e não eu, habitante anónimo deste Planeta? Quem o arrastou assim, quem está prestes a excluí-lo de viver?
Doravante, tudo farei para que todos vivam com dignidade!
Ainda hoje restam dúvidas sobre “Milagre…”, Poção Mágica…” Não teria sido salvo por uma dessas Missões Humanitárias de que ele passou a fazer parte?
Há quem afirme ter-se cruzado com ele engrossando o volume da juventude anónima que: “… Por obras valerosas se vai da morte libertando”(a)

(a)referência a Luís de Camões


Mª. Celeste Correia

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